Por R.K.Brockelt
O ano era 1991 e como de costume, eu e minha irmã mais velha passávamos pelo cemitério antigo antes de chegar na escola. Minha irmã era alta, tinha dezoito anos de idade e, seguindo as regras da época, participava de um grupo de góticos que gostavam de ficar bebendo algo justamente no cemitério qual passávamos todos os dias.
Era era loira, mas faziam uns meses que tingia o cabelo de preto, para combinar com as roupas da mesma cor, assim como a maquiagem, pesada e escura, geralmente usando batom preto. Eu me amarrava nos brincos dela: em uma das orelhas eu podia contar uns seis ou sete, todos pequenos, indo do lóbulo até o alto. Aquilo era legal. Nossa mãe infelizmente não gostava muito do visual dela, assim como dos amigos que ela convivia. E minha mãe, como sempre, tinha razão em não gostar.
O nome da minha irmã alta e gótica era Kristyna, escrito desse jeito mesmo, foi coisa do meu pai que não conheci muito bem, já que ele morreu quando eu tinha dois anos. Ele era descendente de alemães - soube que meu bisavô veio para nosso país fugindo da guerra, junto com a mãe dele, escondidos em um navio - e o que eu lembro bem era da altura dele e do tamanho, parecia um urso de tão grande. Com certeza herdamos isso dele, todavia assim mesmo Kristyna era ainda mais alta que eu naqueles dias.
Era uma sexta-feira e o dia estava cinza e frio. Kristyna usava a jaqueta de couro que tanto gostava e que comprara depois de muito trabalhar em um escritório no centro, não lembro ao certo o nome da empresa e nem o que vendiam, o certo é que depois de uns anos, faliu. E eu estava com minha calça de moletom preta e uma camiseta de alguma banda de rock ou metal, de jeito nenhum consigo lembrar qual, mas bem provável era do Maiden. Não conhecia quase nada do conjunto na época, mas sempre achei o mascote deles bem maneiro.
Acredito que todos os cemitérios possuam um aroma único, algo como perfume de flores misturado ao cheiro de velas queimando e algo mais, tenho certeza de que os túmulos bem lacrados não consigam evitar a emanação da decadência. Lá no fundo todos conseguem sentir a decomposição, bem leve, mas presente.
"Gabor, olhe só."
A voz dela me tirou de um transe íntimo. Kristyna tinha uma voz suave, o que contradizia seu visual pesado. Assim sendo, olhei para a direção que ela apontava.
"Kris, vamos nos atrasar para a aula. Não estou afim de ficar para fora de volta..."
"Mas olhe ali. Está aberto."
"O quê..."
"O túmulo. Está aberto. Venha, vamos ver."
Kristyna além de gótica tinha adquirido um gosto mórbido por situações daquele tipo. Adorava tudo quanto era filme de terror que passava tarde da noite e também locava compulsivamente todos os VHS desse estilo em uma locadora do nosso bairro. Graças à ela, conheci praticamente todos os clássicos fantasmagóricos, bandas de rock e derivados. E graças à ela, vi meu primeiro cadáver decomposto.
Tenho que ser justo: não foi bem um cadáver inteiro, mas umas partes. Acredito que algum coveiro tenha ficado com preguiça de limpar aquele túmulo aberto, que provável receberia outro corpo para o processo de apodrecimento. Kristyna me levou até o túmulo aberto, era antigo e sem muitas parafernálias, sem azulejos e nada. Era de cimento bruto.
Eu e ela olhamos o interior: havia algo que parecia terra preta e úmida, misturada com alguns pedaços antigos de madeira - o que acredito até hoje serem pedaços do caixão apodrecido - algumas peças de roupa emboloradas, algo que parecia um véu e aqui e ali, pateticamente, ossos cinzas e um tanto amarelados. Um fêmur, quase um braço inteiro, as costelas estavam lá também.
O crânio ainda possuía uma boa quantidade de cabelo ruivo sujo; o maxilar estava aberto, um grito desesperado e silencioso, eterno. Alguns dentes faltando, outros eram implantes. Dava para ver o prateado de alguns. Uma órbita negra fitando algo que não estava lá e do lado esquerdo, mesmo ressecada pelo tempo, um pedaço de pele mumificada, a pálpebra fechada como no dia do velório, ressecada.
E o cheiro, algo orgânico, como um banheiro velho, um aroma triste e escuro, que misturava-se ao perfume de jasmim que ali estavam depositados.
"Gabor, meu irmãozinho, é isso o que realmente somos. Não passamos de matéria apodrecida. Lembre-se disso sempre."
Olhei para Kristyna, que observava aquilo com toda a atenção, certamente guardando todos os detalhes para contar aos seus amigos naquela noite.
"Você é doente, Kris. Vamos embora. E muito obrigado por me proporcionar essa experiência agradável. Que merda, viu."
Ela me olhou: olhos azuis, pele branca, cabelos pretos e brincos. Maquiagem também preta nos olhos e aquele dia ela estava com um batom claro nos lábios.
"Não há esperança, Gabor. Lembre disso. O que importa é o agora. E em que série você está mesmo? Às vezes você parece um acadêmico falando, sabia?"
"Isso se chama gosto por leitura. A gente fica com o vocabulário maior. E estou no segundo ano, apenas um ano atrás de você. Como pode esquecer isso?"
Ela me deu um tapa na cabeça, daqueles tapas que só irmãos sabem dar. Eu não tinha ideia, mas ela ia esquecer muito mais do que a série que eu estava, mas seria gradativo.
Caminhamos pelo cemitério em direção à escola, sob aquele céu cinza e o vento frio de junho.